quinta-feira, 8 de março de 2012

Sumário:
Apresentação - Ester Kosovski e Heitor Piedade Junior.
Vitimização do Meio Ambiente - Edilaine Regina da Silva Silveira.
Vitimologia e Judaísmo - Ester Kosovski.
A Criança no Sequestro e no Incesto - Graça Pizá.
Vitimização no Sistema Penitenciário - Heitor Piedade Junior.
Por Onde Começar a Reforma Penitenciária - Marli da Silva.
Janusz Korczak: um legado para a humanidade - Mônica Bezerra de Menezes Picanço.
Tecnologia, Ética e Educação - Riva Roitman.
A Vitimização do Educador: um holocausto na sociedade líquida - Robert Segal.
Terapêutica Vitimológica: as doenças sociais - a cidadania invisível - Selma Regina Aragão e Angelo Luis Vargas.
Vitimologia, Violência Urbana e Segurança Pública - Wanderley Rebello Filho.
Violencia Escolar: consideraciones crimonologicas y preventivas - Hilda Marchiori.
Mediación y conciliación penal - Elias Neuman.
In Pensar em Clave Abolicionista - Louk Hulsman.

Vitimologia e Direitos Humanos: uma boa parceria.

Ester Kosovski
Vitimologia é um campo multidisciplinar e oferece muito mais do que apenas uma coleção de estudos sobre vítimas. Inicialmente as pesquisas e abordagens vitimológicas eram ligadas à criminologia, mas agora existem muitas outras possibilidades. Vítimas constituem um poderoso clamor para a consciência atual e debate público e nos levam a analisar a medida do nosso próprio sofrimento e do sofrimento dos outros. É também um escopo para o Movimento de Direitos Humanos. Enquanto vítimas de crime freqüentemente têm preocupação referente à sua participação no processo, na lei, nas conseqüências e efetividade, vítimas de opressão e abuso de poder, necessitam e querem proteção e assistência antes de mais nada. A parceria entre Vitimologia, Movimentos de Assistência às Vítimas e Direitos Humanos enseja mais perspectivas e fortalece ambas as partes.
O reconhecimento de que devemos ter sensibilidade para com o sofrimento de seres inocentes não determina que tipos de sofrimento devemos atender, que medidas devemos tomar para atender aos diferentes e, às vezes, contraditórios pedidos de vítimas e por que e como responder apropriadamente às vítimas.
A vitimologia é um campo multidisciplinar por excelência e abrange vários níveis de atuação em diferentes contextos.
Podemos dizer que repousa em um tripé: estudo e pesquisa; mudança da legislação e assistência e proteção à vitima. Cada um desses segmentos é de importância fundamental para uma nova visão do crime e de todo o sistema penal.
A visão que durante séculos prevaleceu, da importância primordial que deveria ser dada ao crime e ao criminoso, sendo a vítima a grande esquecida no drama criminal, está sendo modificada com abordagem vitimológica da relevância da vítima e da necessidade da sua inclusão no processo e assistência a quem tem direito.
Todo o arcabouço do sistema penal, a começar com a polícia, passando pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e finalmente a execução da pena é calcado quase que exclusivamente na perseguição ao criminoso (nem sempre bem sucedida) e na sua punição (quase sempre falha), deixando fora das preocupações do Estado a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa e que deve requerer mais atenção. O condenado, cumprindo pena de prisão, recebe do INSS o auxílio reclusão. E a vítima, como é amparada no seu prejuízo às vezes incalculável?
A visão vitimológica tem contribuído para modificar este contexto, inclusive apontando medidas extrajudiciais quando cabíveis, que geram diminuição da hostilidade e melhor resolução de conflitos. Muitos países de várias partes do mundo, inclusive do continente americano, já estão adiantados na prática da aplicação conceitual, na modificação das leis e principalmente na criação de centros de proteção e atendimentos às vítimas.
A atenção à vítima engloba, portanto, o estudo e a pesquisa, para dimensionar e conhecer melhor o objetivo, a adaptação da legislação a uma nova abordagem, e o apoio, assistência e proteção à vítima na chamada advocacia da vítima, campo vasto para o advogado.
A pesquisa enfocando o impacto do crime e da violência sobre as vítimas ajuda a detectar o tipo necessário para a criação de programas especiais.
Algumas dessas ações, já implantadas com sucesso, incluem o programa de intervenção em crises, a compensação, a restituição, o ressarcimento do dano, a assistência médica, psicológica e jurídica que prevê o acompanhamento tanto na mediação, como no processo criminal ou cível quando instaurado.
Desde os primeiros trabalhos em vitimologia a partir de Mendelsohn, que nomeou a ciência, e de Von Hentig no final dos anos 40, houve um avanço fantástico a ponto de hoje a vitimologia e os movimentos pelos direitos das vítimas constituírem possivelmente a força existente mais dinamizadora para a transformação dos sistemas de Justiça Penal. Isto, sobretudo, a partir do forte impulso nos anos 60, em que se abriam novos horizontes de investigação e de ação em matéria criminológica e vitimológica.
Esse conhecimento, por sua vez, tem sido utilizado pelos movimentos de ação em defesa das vítimas e de evolução da aplicação da Justiça Penal. Especialmente valiosos têm sido os movimentos de defesa dos direitos da mulher, da criança e do adolescente, dos indígenas, dos condenados e de grupos especialmente vulneráveis em matéria de vitimização, como as minorias e os excluídos.
A ação desenvolvida por estes grupos tem servido de retroalimentação para um conhecimento cada vez maior da vitimização e dos meios para reduzi-la.
Há várias ideologias dentro dos movimentos de defesa das vítimas condicionadas às realidades das diversas sociedades.
Podemos citar algumas:
I.Ideologia da atenção às vítimas
Sublinha a necessidade da participação da comunidade para assistir e ajudar a vítima a superar a sua situação. Em países da Europa e nos Estados Unidos, este critério é também válido para as vítimas de acidentes ou de doenças, tanto quanto para as vítimas de delito – é o conceito de Estado Benfeitor (Welfare State) que procura assistir a quem necessita. Procura também conhecer a vitimização oculta, como as lesões psicológicas que só se manifestam a posteriori e requerem o acompanhamento psicológico e de assistentes sociais.
II.Ideologia da reabilitação
Esta ideologia é orientada primordialmente para a restituição e mediação e, através destas, a integração da vítima à sociedade.
III.Ideologia da retribuição
Os aspectos desta ideologia priorizam, em nome da vítima, o uso do direito penal e da sanção como resposta ao delito. O perigo desta ideologia é aumentar a repressão, a título de defender a vítima e vingá-la.
IV.Ideologia do direito penal mínimo
Esta ideologia minimalista, em contraposição à da retribuição, procura reduzir a via do direito penal, promovendo formas civis e composicionais de solução para reduzir o número de casos atendidos pela justiça penal e promovendo sanções alternativas e medidas de despenalização para os casos já em fase judicial.
V- Ideologia abolicionista
Temos também, originada nos países do norte da Europa e com adeptos através do mundo, a ideologia abolicionista, que propõe a abolição das prisões e do sistema de justiça penal e sua substituição por outras formas de resolução de conflitos, de natureza não violenta, menos formalizada e com plena participação dos envolvidos.
VI.Ideologia da prevenção
Finalmente, também encontramos dentro dos movimentos de defesa da vítima a ideologia da prevenção.
Esta é uma concepção que, em maior ou menor grau, acompanha também cada uma das orientações anteriores e tem a maior importância, porquanto se é obtida uma efetiva prevenção, a vitimização é atacada em suas raízes, reduzindo-se a freqüência e a gravidade.
Por eufemismo, tem-se denominado também prevenção "secundária", "especial", ou "individual" a ação dos sistemas de justiça penal, mas a ação destes sistemas é uma ação posterior ao delito e à vitimização; a verdadeira prevenção consiste em ações ex-ante que possam impedi-la ou reduzi-la.
Atualmente, adota-se uma classificação em ações de prevenção social, situacional e comunitária. Estas ações podem ser dirigidas à população em geral, ou a grupos especialmente vulneráveis, como os chamados excluídos.
A prevenção social deve consistir em ações dirigidas a atacar as raízes profundas e autênticas dos delitos e sanar as discrepâncias e injustiças para com quem não tem nada a perder.
A prevenção situacional sinalizou primordialmente a reduzir as oportunidades do delito. Consiste em detectar as formas e lugares onde ocorrem os tipos particulares de delito e a recomendação de critérios para a adoção de medidas para cada situação e quais pessoas da comunidade ou instituições deveriam executá-las.
O enfoque da prevenção comunitária toma e combina medidas de prevenção própria aos esquemas anteriores, levando à prática no contexto comunitário e, se é obtida verdadeiramente a ação comunitária, o seu efeito é maior do que qualquer outra.
Os três enfoques não são excludentes, mas complementares e é sempre necessário ouvir e incluir a participação da comunidade.
Há outras variáveis a considerar, como o medo da vitimização e a atuação dos meios de comunicação no incremento deste medo.
As Nações Unidas têm se preocupado com a questão das vítimas, tendo aprovado, com o voto do Brasil, a Declaração dos Direitos das Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, em Assembléia Geral no Congresso de Prevenção de Crime e Tratamento de Delinqüente em Milão, na Itália em 1985, ratificado em 1986.
Neste lapso de tempo a abordagem vitimológica mostrou-se uma esperança, não de resolver o problema da criminalidade, mas de reduzi-lo e dar um tratamento mais humanitário e justo aos segmentos menos favorecidos da sociedade, escutando-os, dando-lhes voz, incluindo-os como vítimas vulneráveis nas decisões sobre o seu destino, como objetivo máximo de encontrar respostas positivas e benefícios para as partes envolvidas e assim aproximar-se da Justiça.
O que é sofrer injustiça?
É complexa a definição de quem realmente sofre injustiça; podemos indagar a indivíduos ou grupos que não receberam o mesmo tratamento que outros ou não foram premiados por seus méritos, trabalhos, necessidades ou títulos.
Esta visão de sofrimento, que inclui dificuldades excepcionais, mas também questões preliminares e distinções sobre justiça, não permite cálculo do sofrimento das vítimas; ao mesmo tempo, é muito restritiva e técnica para o discurso cívico popular, assim como as várias teorias e ideologias que sustentam o nosso conceito comum de vítima e seus direitos.
Em uma escala mais compreensiva, o holocausto serve como ponto de referência do qual os judeus podem ter uma perspectiva do passado e visão da sociedade atual. O holocausto é tido como sendo uma conseqüência de todas as formas precedentes de anti-semitismo, desde o mais sutil preconceito até os mais revoltantes assassinatos em massa. O anti-semitismo tem sido parte da história ocidental.
As superstições e crenças, os padrões medievais de discriminação e perseguição, bem como as ideologias do século XIX e as modernas doutrinas de raça superior, impérios dominantes e nacionalidades, todos desembocaram no holocausto.
Elie Wiesel, quando foi agraciado com o Prêmio Nobel em 1987, declarou que esta homenagem lhe dava prazer e medo; "Me amedronta porque me indago: tenho eu o direito de representar as multidões que pereceram? ... É prazeroso, porque posso dizer que esta honra pertence a todos os sobreviventes e seus filhos e, através de nós a todo o povo judeu com cujo destino eu sempre me identifiquei".
O holocausto desperta temas históricos complexos e legislação nacional e internacional, particularmente em questões de punição e compensação.
Embora a justiça requeira uma resposta a sofrimento inocente, há muitas vezes impedimentos que a obstam: ressentimento deixa pouco espaço para empatia e é uma força emocional muito forte.
Tem que haver uma revisão da evolução dos direitos humanos com relação às vítimas e sua proteção; a realidade social, recursos, impacto da opressão, a legislação referente e a advocacia da vítima.
Diferentemente da vitimologia, o campo de direitos humanos tem pouco apelo de pesquisa acadêmica e científica e menos literatura examinando temas de vitimização.
Como uma ciência mais estratificada, a vitimologia pode oferecer aos direitos humanos a metodologia e um conjunto de teorias vitimológicas e questões, sem contar com dados comparativos e outra categoria de vítimas, como vítimas de crimes. Com ênfase no crime, a vitimologia pode auxiliar os direitos humanos a teorizar mais claramente a respeito dos "crimes contra a humanidade" ainda parcialmente operacionalizado.
O campo dos direitos humanos pode oferecer à vitimologia uma concepção mais ampla de vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas criminais, apesar de seus efeitos danosos. O enfoque de direitos humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e a relação entre causas do crime e causas da opressão. Podemos ver, por exemplo, que a opressão produz as condições primordiais para os crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Uma análise do ponto de vista dos direitos humanos é detectar as condições adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização.
Se não detectamos as causas profundas de vitimização, sempre seremos inábeis para oferecer às vítimas mais do que ajuda e conforto remediadores. A avaliação dos direitos humanos, se for considerada seriamente, nos colocará também a questão da aceitação, por parte da vitimologia, da legitimidade das definições oficiais de crime, geralmente sem maiores indagações.
Assim, esta abordagem nos permitirá considerar uma "nova" vitimologia, que transcende a "velha" vitimologia criminológica, e que ironicamente trará a vitimologia de volta aos propósitos originais.
Como o pioneiro Benjamin Mendelsohn sugeriu há cinqüenta anos, a vitimologia é ciência que estuda vítimas – não somente vítimas de crime, mas vítimas em geral; os direitos humanos nos darão uma visão de vítimas antes ignorada.
Muitos acadêmicos têm reconhecido os laços entre os direitos das vítimas e os direitos humanos e detectaram as falsas distinções e opções que os movimentos de "lei e ordem" sustentam para as vítimas. Constatam que promover direitos da vítimas depende de promover direitos humanos em geral. Por essa perspectiva, os direitos humanos internacionais oferecem uma promissora nova direção para as vítimas e a vitimologia.
Em contrapartida a vitimologia oferece instrumental para o estudo científico de direitos humanos, que abrange mais direitos qualitativamente e quantitativamente, sendo que a vitimologia tem mais profundidade e produziu uma série de teorias e metodologias que podem fundamentar a compreensão da opressão, seus aspectos, causas, impactos e soluções. Até hoje, temos pouca informação sobre os problemas e necessidades das vítimas de opressão e como providenciar efetivo alívio.
Podemos aplicar vários conceitos vitimológicos a direitos humanos. As vítimas de opressão terão uma "responsabilidade funcional" para com a sua vitimização? A que ponto as violações de direitos humanos emergem de mecanismos de controle social doméstico? Alguns grupos ou poucos poderiam ter sido designados implícita ou explicitamente vítimas "culturalmente legitimadas", não lhes garantindo proteção efetiva?
A vitimologia, obviamente, não tem todas as respostas, mas pode auxiliar muito na análise sistemática e compreensão das vítimas e, paradoxalmente pode fornecer mais respostas adotando a perspectiva mais ampla dos direitos humanos . Essa perspectiva, por exemplo, poderia revelar o impacto da opressão na vitimização criminal e ajudar a compreender as causas. Por muitas razões, o intercâmbio entre vitimologia e direitos humanos é mutuamente benéfico.
BIBLIOGRAFIA
AMATO, Joseph A. Victims and values: a history and theory of suffering. New York- London: Praeger Publishers, 1990.
ELIAS, Robert. The politics of victimization, victims, victimology and human rights. New York – Oxford: Oxford University Press, 1986.
FATTAH, Ezzat A. Understanding criminal victmization. Ontário, Canáda: Prentice-Hall, 1992.
KOSOVSKI, E.; PIEDADE Jr.; MAYR, E. (Org.). Vitimologia em debate. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
KOSOVSKI, Ester (Coord.). Vitimologia enfoque interdisciplinar. Rio de Janeiro: Reproarte, 1992.
MANZANERA, Luiz Rodrigues. Victimologia, estudio de la victimas. México: Porrúa, 1990.
MELLO, Celso D. de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

O Futuro que Não Vem (Falcão: meninos do tráfico).

Wanderley Rebello Filho
Minha “filosofia” superficial de escritório já me permite concluir algumas coisas: só existe o passado, o presente e o futuro não existem!
Para mim, as imagens, da infância perdida pelas crianças que, abertamente, confessaram o seu envolvimento com o tráfico, não revelaram grandes novidades. Pelo contrário: depois de mais quase 15 (quinze) anos trabalhando com Direitos Humanos, posso dizer sem medo de errar: é muito pior do que o que vimos!
O passado existe, está dentro de nós, agora um pouco pior. O presente... o que é o presente? Quando achamos que estamos vivendo no presente, ele já passou, e quase que imediatamente ele se transforma em passado, e passa a viver em nossa lembrança. O futuro então, nem merece comentários. Existirá ou não! Logo, salvo engano, só existe o passado!
O que eu quero com isto, onde quero chegar? É que o documentário citado, “Falcão – Meninos do Tráfico” já passou, é passado, e não resistiu ao paredão do BBB da última terça-feira. De um documentário que deveria dar ensejo ao estudo sério dos direitos humanos fundamentais, e a políticas e projetos sociais também sérios, voltados para a proteção integral das crianças e dos adolescentes, como manda a Constituição Federal, muito pouco vai restar, senão a indignação momentânea e passageira que não tirou o sono de muitos, muito menos a preocupação da maioria.
Mas, sabem qual é a grande ironia? Nós seremos as vítimas dos futuros “Falcões”, como já somos há muito tempo. Eu, o senhor leitor, nossos filhos, nossos netos... Mas, também, somos todos culpados, por ação e/ou por omissão! Somos todos culpados porque, no mínimo, não berramos com o poder público para que eles tomassem uma providência. Alguns se sentiram aliviados quando souberam que, dos 16 Falcões, 15 já haviam morrido. Mas, senhores, podem me acreditar, há milhares nas filas esperando.
O nosso Estado é um balão pronto para estourar, e nós precisamos descobrir, com urgência, o ponto exato que antecede a sua ruptura, porquanto não dá mais para suportar tanta miséria, indiferença e degradação. Não podemos mais suportar nosso sistema de saúde em frangalhos, nossa educação aviltada, e nossa esperança amputada: não há prótese para isto! A dignidade de todos os seres humanos, em nosso Estado, não passa de letra morta da Constituição Federal, e às vezes me parece que nossas autoridades estão esperando chegar até o limite em que podem ir, mas pode ser que elas descubram, tarde demais, que foram longe demais.
Senhores, são mais de 30 milhões de pessoas vivendo em estado de miséria em nosso País, e mais de 60 milhões vivendo em estado de pobreza, o que é muito diferente, todas sem conseguir a satisfação de suas necessidades mínimas, e de seus direitos mais urgentes, como trabalhar, estudar e se alimentar. A cena das crianças à disposição do tráfico, e dele vivendo, nos remete a um País que, em vez de esperança, apresenta aos seus menores o medo e a violência. Nosso Estado, senhores, há muito tempo decidiu participar do banquete supremo da civilização: o da decadência.
Os Falcões continuam voando sobre os nossos Céus, e eles querem apenas viver o suficiente para conhecer uma menina bonita, uma arma poderosa, e uma sensação entorpecente de droga e de poder. Está bom assim! Para que mais? Nós não podemos deixar tudo para o Estado, senhores, porque eles têm que se preocupar, agora, com as próximas eleições. Mas, diriam vocês, nós não temos que nos preocupar com isto, está tudo lá longe no Rio de Janeiro... mas, eles têm asas, senhores, e podem voar até aqui! Parte da tragédia reside no fato de muitos acharem que jamais vão ser alcançados, e que as coisas são assim porque assim elas têm que ser. Pode ser!
Mas, como diria Juan Ramón Jimenez, “Vai devagar, não corras; pois, aonde tens que ir, é só para ti... Vai devagar, não corras, que o menino de teu Eu, recém nascido, Eterno, não poderá te seguir!” Que ensinemos isto aos nossos “meninos falcões”, antes que eles nos mostrem o que aprenderam de pior. Já foram destruídas uma, duas, três... “quinze” rosas de nosso “jardim de meninos falcões”, mas não podemos deixar que se destrua todo o nosso jardim. A esperança tem que ser a última a morrer! Rio de Janeiro, 22 de Março de 2006.

Transformação e Fortalecimento: uma ação para a cultura de paz.

Kenia Maynard da Silva
Fisioterapeuta, Mestre em Ciência da Motricidade Humana, professora universitária, professora de Tai Chi Chuan, membro da Sociedade Brasileira de Vitimologia.
Muito se discute hoje a violência que assola o mundo e as suas conseqüências tanto no indivíduo quanto na sociedade. Cientistas sociais chamam a atenção para a banalização da violência, fato que aponta a falência da valorização da vida humana, onde a falta de indignação está se tornando cotidiana. Em contrapartida se vê pequenos focos de movimentos em prol de uma sociedade mais justa e mais humana, a mídia tem dado um mínimo espaço a estes temas, quando mostra que um grupo de pessoas que optaram por viver de forma mais simples, com menos recursos financeiros, porém, mais felizes, criaram o movimento chamado de “simplicidade voluntária”. Mostram também, pequenas “ilhas” de ações, por vezes solitárias de indivíduos que ainda crêm na espécie humana e a despeito dos recursos levantam bandeiras de humanização, firmam propósitos em suas vidas com a intenção de trilhar e indicar um caminho para uma vida melhor para se viver, utilizando seus próprios recursos, que por vezes são escassos, mas imbuídos de tamanha certeza pelo Bem social comum, que conseguem a multiplicação, e atraem outras pessoas com o mesmo propósito, como se estivesse acendendo uma luz nesta imensa escuridão que está se tornando a vivência humana.
Muito se fala em Paz, também, um bem necessário a todos os humanos, se tornando um Bem social que está escasso na vida humana. Hoje se tem diversos estudos sobre a Paz e os meios que podem desenvolver este Bem. A Paz é algo complexo, muito estudada, mas as conclusões dos estudos já realizados são direcionadas para o entendimento da Paz como um “estado de espírito”, sinalizando que a Paz começa no íntimo do ser humano, justamente no seu aspecto humano. Tendo em vista que a valorização da humanidade está comprometida na sociedade, vemos que este Ser está num “beco sem saída”, e como todos os animais ao se verem acuados, se lançam a uma ação tomando as atitudes necessárias para sair da situação em que se encontra. A diferença entre os animais e os seres humanos é o que se convencionou chamar de “consciência intencional”, que lhe permite a escolha, que se conhece como “livre arbítrio”. Outra questão a ser bem estudada, pois esta escolha deve ser baseada em que? Quais são os limites desta escolha? Aonde começa? E termina? Desafiando tudo isto, a Física Quântica, vem dizendo que nós, seres humanos, somos criadores da nossa realidade, a partir da nossa consciência, que a escolha é feita a partir de um misto de emoções e consciências, aos quais os seres humanos estão firmemente interligados, numa rede complexa de vivências.
Alguns estudiosos vêem a situação social de forma mais ampla pautando seus estudos na política sócio – econômica, que está demonstrando a sua ineficiência e mostrando o tipo de alguns seres humanos que estão nesta gestão, que fizeram a escolha de desvalorizar o Bem Social comum, em favor do Bem próprio, e esta escolha foi feita baseada em que? Estes estudiosos detectam a falta de valores humanos positivos nestes gestores, pode-se perguntar neste momento: “E os outros fazem o que? Porque não agem em prol do Bem Social comum?”, novamente vemos aí uma escolha.
Com base nas premissas da Física Quântica, nos diversos estudos sobre violência e paz, nas necessidades atuais de transformação da sociedade que se vive, entendendo que esta sociedade é criação humana, onde se dá a vivência de quem a criou e lembrando a frase de Féderico Mayor, da UNESCO, que disse “...se é na mente dos homens que existe a guerra, é na mente dos homens que devem ser erguidos os baluartes da paz...”, a transformação deve começar no ser humano e ser fortalecida para que as dificuldades do meio, sirvam como plataforma para alcançar esta transformação.
A pergunta que se tem agora é: “Como?”.  Pode-se perguntar aos adeptos da simplicidade voluntária, e as pessoas que acreditam que as ações realizadas com humanização surtem efeitos benéficos a sociedade, e o ponto complexo em comum a estes grupos, assim como a outros, que pode reverberar por toda a sociedade está pautado em valores. Este nó da complexidade gera uma rede interligada que, se incentivada, opera mudanças individuais culminando fatalmente em transformações sociais. E quais os meios para a sua execução? Vários estudiosos se encarregaram de descobrir estes meios. Os temas mais abordados são a Educação e o Esporte, que estão interligados em sua essência, outros meios também divulgados por meio científico são as práticas orientais de Meditação, as práticas orientais corporais, como a Yoga, o Tai Chi Chuan, Tai Ken Dô, e outras artes marciais. Porém, todos os meios têm em comum a iniciação de um novo despertar de consciência que passa pelo corpo, no âmbito interior, precisa ser fortalecido em valores universais, se torna base das atitudes, incluídas nas ações e se expressa no exterior, em sua vivência, estabelecendo o tipo de vida que o indivíduo escolheu, dando suporte as  necessárias ações emergenciais e a partir desta nova “consciência intencional” transformar a sua própria criação, a sociedade em que vive, e estabelecer “os baluartes da Paz” como um Bem Social comum

Pipas em Céu Noturno: o hábito de soltar pipas durante a noite na Barra da Tijuca - uma análise do fenômeno.

Angelo Vargas
Leonardo Allevato
Ana Lilia Ollé Galvão
Flávia Fontoura
Universidade Estácio de Sá (UNESA)
Resumo
O hábito de “soltar pipas” ou “empinar papagaio” faz parte do repertorio lúdico da cultura brasileira. No que respeita aos grandes centros urbanos das metrópoles, a prática encontra maior aderência nos subúrbios ou nas periferias. Entretanto, esta espécie de jogo, tem sua origem multimilenar na China e assumiu formas difusas como lazer, celebrações religiosas, pratica utilitária e estratégia bélica. Este estudo investigou a pratica de “soltar pipas” durante a noite na cidade do Rio de Janeiro na Barra da Tijuca. A identificação do fenômeno possibilitou traçar estratégias metodológicas para abordagem dos sujeitos, assim como algumas de suas características e interesses pessoais. A pesquisa assumiu substancial importância, já que o fenômeno é considerado como comportamento atípico para o lugar, sobretudo no que concerne ao local da pratica (orla marítima), e os horários (noite e madrugada), e os “modus vivendi” e “operandi” dos moradores do bairro.

O hábito de “empinar papagaios ou soltar pipas” tem sua origem na China em períodos remotos da história. É possível inferir que tal prática observou três sentidos no contexto social da cultura chinesa: o sentido bélico, o sentido do lazer-lúdico e o sentido sagrado. Se em tempos de perigo de invasões territoriais por tribos nômades, as pipas serviram como sinais de alerta para a direção dos ventos e para a situação tática do inimigo; em tempos de paz, fez parte do repertório lúdico como lazer ou passatempo na cultura oriental. Entretanto, é imperativo destacar o sentido religioso tendo por finalidade, “espantar maus olhados”, quando as pipas subiam aos céus durante a noite iluminadas por lamparinas. Para as sociedades ocidentais, tem, ao longo dos tempos, constituído uma forma de lazer como passa-tempo, prática esportiva (competitiva – artística) e jogo lúdico.
No Brasil, é possível observar esta prática em quase todas as regiões do país, sobretudo nas periferias ou subúrbios das grandes metrópoles. Todavia, importa referir, que o hábito de soltar pipas não se restringe à “territórios tribais” das periferias metropolitanas. Como exemplo, a prática é intensamente utilizada em espaços elitizados, nas praias, morros e favelas das zona sul e leste, como por exemplo, na cidade do Rio de janeiro. Assim, as pipas e todo o aparato que a contempla (expressões regionais, estereótipos, a rabióla, o cerol e etc.) transcendem os limites “circunscritos” das classes sociais e se inserem como um símbolo da cultura brasileira.
Embora as pipas sejam utilizadas com objetivos difusos (inclusive como linguagem simbólica para o tráfico de drogas), é como lazer (acessível às classes de menor poder de aquisição pelo seu baixo custo) que o fenômeno atinge maior significação. Não resta dúvidas que embora o lazer seja contemplado na Constituição da Republica Federativa do Brasil como um direito social do cidadão, seu acesso é estratificado conforme o poder de aquisição e consumo dos grupos sociais. Na lição de Melo e Alves Junior (2003), as formas de diversão ou práticas de lazer resguardam diferenças axiológicas conforme as épocas não só no que tange a sua morfologia como também no que concerne aos objetivos: “Contudo, observamos que a contínua busca de formas de diversão não significa ter sempre existido o que hoje chamamos por lazer, na medida em que tais formas de diversão guardam especificidades condizentes com cada época, que devem ser analisadas com cuidado. Por certo existem similaridades com o que foi vivido em momentos anteriores – e mesmo por isso devemos conhecê-los, mas o que hoje entendemos como lazer guarda peculiaridades que somente podem ser compreendidas em sua existência concreta atual. O fato de haver equivalências não significa que os fenômenos sejam os mesmos. Podemos observar as diferenças até mesmo nas formas de denominação. É somente a partir de determinado momento da história que se começa a utilizar a palavra lazer para definir um fenômeno social...” (Melo e Alves Junior, 2003.p.2).
O fato da prática das pipas transcender as fronteiras dos subúrbios e periferias e inserir-se nas alternativas de diversão ou lazer dos bairros “nobres” ou “emergentes”, como no caso da cidade do Rio de Janeiro, sugere uma socialização do ócio e dos tempos livres que por sua vez desconhece as barreiras econômicas e se unificam nas possibilidades lúdicas. A prática das pipas (com cerol e todo o repertório de linguagem e estereótipos a ela afeitos), na Barra da Tijuca no período noturno, causou em um primeiro momento, perplexidade e estranheza tendo em vista não fazer parte do “modus operandi” da população. Contudo, a magnitude dos eventos (como a participação simultânea de mais de duas centenas de sujeitos) constitui um fenômeno a ser investigado diante da intrigante trama que envolve o “jogo de cortes” ou a “tosa” e seus participantes (jogadores).
Em Deporte e Ócio en el proceso de la civilización, Elias e Dunning inferem que: “nas sociedades industriais avançadas, as atividades recreativas constituem um reduto em que a inserção social pode expressar-se de forma moderada no que diz respeito aos níveis de emoção. Não poderemos entender o caráter específico e as funções concretas do ócio nas sociedades, se não nos damos conta de que em geral, o nível de controle das emoções tanto na vida pública como na vida privada, se eleva nas sociedades menos diferenciadas (Elias e Dunning, 1986.p.85)
O presente estudo objetivou identificar os sujeitos no que respeita a faixa etária e a área da cidade em que residem e investigar ,sobretudo, as razões que os levaram a prática das atividades no local específico (no posto 8) durante a noite.
Como procedimento metodológico foi utilizado a observação “in loco”, que possibilitou a análise do repertório de comportamento dos sujeitos no que concerne às relações interpessoais e em “situações de jogo”. Numa segunda etapa do estudo, após utilização de estratégias de aproximação, foi aplicada uma entrevista semi-estruturada que possibilitou o levantamento das características dos sujeitos.
Os resultados permitiram observar que os eventos ocorrem entre os dias de sexta-feira e domingos no horário entre 18:30 e 3:00h na Avenida Sernambetiba no posto 8. No que diz respeito às características dos sujeitos, (68 indivíduos) as faixas etárias variaram entre 11 e 60 anos de idade e prevaleceram com 99,8% o sexo masculino. Em sua maioria (83%) são jovens entre 11 e 30 anos de idade. No que tange as culturas juvenis, Machado Pais (1993), assevera que “todo significado cultural é criado com o uso de símbolos. As palavras que um jovem ...dirige numa entrevista são símbolos. A forma como esse jovem veste também se reveste de um significado simbólico. O mesmo se pode dizer da sua expressão corporal..., todo símbolo é qualquer objeto ou evento que se refere a alguma coisa ou, melhor ainda, todo o símbolo envolve três elementos: símbolo em si mesmo, um ou mais referentes e a relação entre símbolo e referente. Esta tríade é a base de qualquer significado simbólico. A descoberta dos significados dos símbolos passa pela compreensão dos significados que esses símbolos tem para os indivíduos, mas vai mais longe do que isso: passa também pela compreensão do uso que os indivíduos fazem desse símbolo (p.61).
O Discurso dos indivíduos respeitante as razões de suas participações nos eventos permitiu identificar categorias tais como possibilidades de estabelecer relações de amizade, baixo custeio, possibilidades de fazer negócios (auferir renda), recurso terapêutico, falta de alternativas de programa, todavia, a categoria “prazer” foi a que mais emergiu dos discursos sugerindo, destarte, que o envolvimento dos sujeitos ocorre sob a égide do lazer. Não obstante o “jogo de cortes” e o ato de “cortar o inimigo” (interveniente ou par) denota uma espécie de “sensação de poder” simbolizado pela permanência de sua pipa no ar. O local parece ser o “campo de batalha”, e a Barra da Tijuca, constitui o local, (elitizado e sem fios de alta tensão) o “território” ou o “céu” conquistado pelo “invasor”.
No que tange ao local de origem dos sujeitos o estudo possibilitou identificar que os participantes residem em praticamente todos os bairros da região metropolitana com destaque para a Zona Sul (Rocinha) e a Zona Oeste (Jacarepaguá). O resultado aponta para uma socialização do lugar, via de regra, em período noturno freqüentado por moradores do bairro objetivando outras formas de utilização do tempo livre ou lazer como a “corrida na praia”, encontros em bares e restaurantes.
Merece destaque a “noção de risco” para si próprio e para as outras pessoas no discurso dos sujeitos. Foram apontados riscos a si próprios como lesões derivadas das linhas com substância cortante (cerol) até os graves acidentes envolvendo motoristas e motociclistas causados também pelas linhas com “cerol”. Somos levados a concluir que o risco (calculado ou não) faz parte do imaginário lúdico dos sujeitos e as sensações de perigo constituem fatores essenciais às experiências de vertigem.
Ainda na lição de Elias e Dunning verificamos que os riscos possibilitam identificar com mais “claridade” um dos aspectos fundamentais das relações entre as atividades recreativas e não recreativas. Talvez seja possível resumir-se conceitualmente se fizermos referência a uma polaridade específica que recorre a vida inteira na forma flutuante de equilíbrio das tensões entre o controle e a estimulação emocional.
É importante assinalar que as manifestações de equilíbrio de tensões variam conforme as sociedades e os grupos que as compõem (Elias e Dunning, 1986. p.144) O estudo possibilitou inferir que aspectos ligados a violência e a segregação social (simbólicas ou manifestas), podem constituir num fator de relevância para esta “espécie de migração” territorial que por sua vez tem modificado os hábitos e os costumes dos moradores e freqüentadores da Barra da Tijuca. Nas lições de Melo e Alves Junior é possível destacar “que é fato inconteste que o tecido humano se desgastou de forma alarmante nas ultimas décadas, o que é também observável em outras cidades do mundo e do Brasil.... O desordenamento econômico global tem produzido efeitos cada vez mais devastadores. Neste processo de desgaste e desordem, é importante perceber como as cidades estão cada vez mais fragmentadas, cada vez mais rigidamente compartimentadas em blocos e submetidas a administrações que privilegiam os grupos economicamente poderosos “(Melo e Alves Junior, 2003. p.48)
Em ultima analise, o hábito de “soltar pipas” à noite na Barra da Tijuca, retrata mais que uma oportunidade de lazer ou passa-tempo. O fenômeno, passa a constituir formas simultâneas de reinvidicações para a ocupação e socialização do espaço urbano de forma simbólica ou manifesta; uma espécie de ação para a libertação dos oprimidos e o conseqüente apoderamento da cidade.
BIBLIOGRAFIA
ELIAS, N, Dunning, E. Deporte y ócio em el proceso de la civilización. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1986.
 MELO, U. A.; ALVES JUNIOR, E,D. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003.
 PAIS, J, M. Culturas juvenis. Lisboa: Casa da Moeda – Imprensa Nacional, 1993.
 VARGAS, A. As sementes da marginalidade. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001.

Holocausto: 50 anos depois.

Jorge Josef
Um Congresso de Vitimologia é, sem dúvida, o fórum apropriado para a realização de um painel sobre o Holocausto pois esta ciência interdisciplinar, representada pela Sociedade Internacional de Vitimologia, credenciada como órgão consultivo das Nações Unidas, tem suas raízes na reação aos crimes perpetrados pelo nazismo.
O primeiro encontro dessa importantíssima visão para o drama humano realizou-se em Israel sob a inspiração de seu idealizador, o Dr. Israel Drapkin 1. Mas já em 1947 Mendelsohn pronuncia sua famosa conferência em Bucarest: "Um horizonte novo na ciência biopsicosocial: a vitimologia". Nasce uma ciência a partir do sofrimento de um povo e que se expressa pela generosidade em relação a todos os perseguidos e discriminados. A necessidade e urgência desta abordagem pode ser medida pelo rápido sucesso que alcançou no mundo todo.
No Sétimo Simpósio Internacional de Vitimologia, realizado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991, presidido pela Dra. Ester Kosovski, tivemos a oportunidade, como Relator da mesa sobre Holocausto, de apresentar uma moção, posteriormente aprovada pela Diretoria, nestes termos (após a exposição de motivos):
"Recomendamos seja pacífica e permanente a realização de uma mesa sobre o Holocausto em todos os Congressos da Sociedade Mundial de Vitimologia".
Os motivos que inspiraram esta recomendação continuam vivos em 1999. A luta contra o ressurgimento do nazismo sob as mais diversas formas requer uma vigilância permanente. Cada encontro é também uma oportunidade para aprofundar a reflexão sobre esse momento da História humana – o SHOA 2 – tão intrigante e ainda muito pouco compreendido dada a enormidade dos crimes, apesar dos esforços de pesquisadores do mundo inteiro.
Cátedras sobre o Holocausto foram criadas em diversas Universidades, além de Institutos e Centros de Pesquisa, teses são elaboradas sob os mais diversos aspectos do conhecimento humano em todas as línguas ocidentais. Recentemente, o cineastra Steven Spielberg criou uma Fundação dedicada a preservar a memória do Holocausto através de entrevistas filmadas com sobreviventes de campos de concentração: a "Survivor of the Shoah Visual History Foundation". Com sede em Los Angeles, conta com representantes em várias partes do mundo. Spielberg define-a como "empório multimídia para fins educativos e jornalísticos".
Psiquiatras e psicanalistas têm-se dedicado a observar não apenas sobreviventes como descendentes de 2ª e 3ª geração sobre quem verificaram sérios reflexos, inclusive suicídios como resultado de distúrbios. Isto é parte de um movimento mundial de repúdio à violência. As pesquisas dos psicanalistas como Judith Kestenberg, Martin S. Bergman, Milton Jucovy sobre filhos de sobreviventes demonstram a profundidade do sofrimento e os reflexos no tempo, sob as mais diversas formas, das agressões sofridas. Também o envolvimento dos filhos com o passado dos pais sobreviventes ou desaparecidos nos campos de extermínio é estudado por Maria Bergman e Marion Oliner 3.
Sei que, quando se fala de Holocausto, surgem inúmeras perguntas. Não há respostas para todas, mas duas questões são constantes e proponho-me para, juntos, buscarmos alguma compreensão para com elas.
A primeira é: "Por que o Holocausto?" Se há tantos dramas humanos, antes e depois, como recentemente na Iugoslávia, agora dividida ou mesmo no Vietnã?
Gostaria de dizer que sinto meus argumentos frágeis diante dos grandes dramas. Mas vivi pessoalmente o Holocausto e acho que todos aqueles que presenciaram as violências citadas ou outras têm a mesma obrigação de denunciar e protestar até o dia em que esses protestos sejam mais fortes que a própria violência. Nossa atitude não é excludente, mas de solidariedade com todas as vítimas tanto que podemos afirmar que o movimento dos sobreviventes em defesa dos direitos humanos, em todas as suas formas, é um dos seus aspectos mais positivos.
A Segunda razão dos estudos sobre o Holocausto é a sua especificidade, o seu aspecto único no infelizmente longo histórico da violência humana, sua singularidade cuja compreensão até hoje nos desafia.
Todo evento é único, mas cada um existe em um contexto histórico. A questão é em que contexto vamos tentar entender o extermínio dos judeus.
O escritor Alvin Rosenfeld define: "Não há metáforas sobre Auschwitz, bem como Auschwitz não é metáfora para nada. Por que? Porque o fogo era fogo, as chamas eram chamas, as cinzas eram cinzas, a fumaça era fumaça. Só podia ser o que era: a morte de judeus". Estamos vendo atualmente que, apesar de o significado de Auschwitz como símbolo do Holocausto haver crescido a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os termos têm sido usados na mídia para condenar todas as atrocidades prejudicando a informação sobre um evento único e a capacidade humana para um genocídio sistemático e continuado com um fim consciente de extermínio.
As primeiras gerações de scholars que investigaram o Holocausto fizeram-no à luz da longa tradição européia de anti-semitismo. Hannah Arendt 4 isolou o anti-semitismo como uma das primeiras influências da política moderna. Não há dúvida sobre o significado central do Holocausto para o mundo moderno. David Cesarini 5 tem, com certeza, razão de chamar a atenção dos educadores britânicos para reconhecer esta importância. Uma análise realizada na Suécia assinala que um terço dos adolescentes do país não estavam seguros de que o Holocausto aconteceu na realidade. O fato perturbou profundamente o Primeiro Ministro que lançou imediatamente um projeto com o objetivo de informar a história do Holocausto aos cidadãos do país. O projeto já resultou em uma conferência, programas de capacitação para professores, criação de um centro de investigação universitária, exposições em museus, etc. Porém a mais efetiva foi a compilação e distribuição grátis de um folheto de 100 páginas "Conte a seus filhos", uma descrição gráfica do Holocausto. O folheto foi traduzido ao inglês com ampla distribuição nos colégios de língua inglesa. A questão é como lecionar esta matéria.
A grande preocupação dos memorialistas do Holocausto não é com os historiadores que negam completamente o extermínio ou como o alemão Ernst Molte que, sem o negar, massifica-o comparando a qualquer outra matança. A preocupação é que, a pesar do imenso arquivo de depoimentos e de filmes, quando se esgota o eu vi e começa o eu ouvi e a interpretação filosófica passa a chamar-se de política e os diversos eu entendi.
Como falar a respeito, como explicar, como apresentar o acontecido?
Uma das respostas nos é dada pelo cinema. Arte representativa deste século, une os recursos de todas as outras, sendo, também, a mais popular e a mais difundida. Naturalmente o Holocausto teve enorme filmografia. Mas para exemplificar os três aspectos do que chamamos eu vi- eu ouvi- eu entendi, selecionamos três filmes bastante conhecidos. Trata-se de SHOA, de Claude Lanzman (França, 1985), A lista de Schidler, de Steven Spielberg (EUA, 1993) e A vida é bela de Robert Benigni (Itália, 1999).
Durante dez anos, o jornalista francês Claude Lanzman 6, dedicou-se a uma obsessão. Filmar a morte nos campos de extermínio onde seis milhões de judeus morreram durante a Segunda Guerra Mundial. Recusou as fotos de arquivo e fez um filme de 9 horas: quatro de depoimentos e cinco de silêncio, de imagens de cinema. Apresentou o "Shoa" (que em hebraico quer dizer catástrofe e também aniquilamento). Sem mostrar um cadáver sequer, a morte está presente na palavra, no presente de quem viveu, de quem viu. Afirma Lanzman: "É difícil falar do filme a quem não o viu porque foi construído a partir da impossibilidade de representar a morte".
A lista de Schindler, de Steven Spielberg 7, tem atores: Ben Kingsley, Liam Neeson, Ralph Fiennes, tem a duração média dos longa-metragens (185m). Baseia-se num romance de Thomas Keneally de 1982, que, por sua vez, se baseia numa história verídica, a história de Oscar Schindler. Empresário católico, membro do partido nazista, que explorava mais de mil judeus em suas empresas, num trabalho escravo, torna-se protetor deles e salva suas vidas, numa árdua tarefa de manipulação e confronto com os oficiais nazistas encarregados de sua destruição. No papel principal, Liam Neeson contorna situações perigosíssimas. Usa charme, mentiras e contemporizações para conseguir seu objetivo e salva centenas de homens, mulheres e crianças. Você nunca tem certeza do que Oscar Schundler pensa e tem como objetivo mas vê que é possível salvar, não somente matar. Este filme de 1993 não apresenta mais testemunhos visuais, são atores. Teve grande sucesso de bilheteria e até o presidente Clinton recomendou que fosse visto. Trata-se de filme da Segunda geração pos-Holocausto, enquadrado no conceito do eu ouvi. Podemos acrescentar que a decisão de Spielberg de filmar grande parte em preto e branco ressalta alguns aspectos da filmagem, já que não se trata de documentário. Cria, com este recurso, o distanciamento temporal necessário em obra de ficção baseada em fatos reais.
A vida é bela, de Roberto Benigni 8 trata do fascismo e do drama do nazismo na Itália como metáfora. Gerou controvérsias desde sua apresentação em Cannes onde recebeu o Grande Prêmio do Juri até o Oscar da Academia de Arte e Ciência dos Estados Unidos, onde teve 7 indicações, inclusive três para Benigni. O filme pode ser dividido em dois atos distintos. No primeiro, vemos o excelente protagonista (Benigni), algo clownesco, de fala acelerada, ridicularizando de todos os modos o oficial fascista, seu rival junto à bela Dora (Nicoletta Braschi). A vitória do frágil apaixonado sobre o imponente e poderoso representante do Estado ditatorial é uma delícia.
Os recursos cênicos vão desde a mímica à ironia. Os gags remetem ao cinema mudo e o triunfo do amor sobre tudo e todos e a justa conseqüência e ilusória felicidade introduzem-nos ao segundo ato como um suspense. Antes disso e somente após 20 minutos de filme ficamos sabendo que Guido (Benigni) é judeu. Esse "tempo" diz-nos claramente que, para o primeiro ato isso não tinha importância, era irrelevante, mas terá para o segundo.
A segunda parte mostra-nos um Guido casado e feliz com a linda esposa e um filho, em sua vida cotidiana, bruscamente interrompida pela invasão de sua casa por uma tropa nazista que quebra tudo e prende pai e filho. Ambos são levados num vagão de transporte de animais para os campos da morte.
O que virá depois é de comover qualquer ser humano. O filme não é sobre os horrores dos campos de concentração, não é sobre crueldade e sofrimento. É sobre o amor – amor de um casal jovem separado sem motivos, injustamente. Dora segue Guido no trem da morte por necessidade de amor. Guido busca comunicar-se com sua mulher por amor. O pai protege seu filho com imenso amor introduzindo-o num "faz-de-conta" com jogos e simulações para diminuir o sofrimento da realidade vivida. A parceria do pai com o filho nesse jogo fantástico é a forma que o autor e diretor encontram para dizer o indizível. Não é um conto de fadas, não tem final feliz.
Como Charlie Chaplin nos induz a muito mais do que a primeira leitura mas também como Dom Quixote ensina sobre o humanismo e a generosidade pela farsa. Guido e Dora com o menino Joshua propõem-nos o que pode ser alcançado quando se trata de eu entendi. E nós também entendemos.
Na atualidade, temos, cada vez mais, obras de ficção sobre o shoá, criados a partir do eu entendi. Naturalmente, são reflexões e, como tais, necessitam da participação ativa do leitor – espectador. É indispensável, nestes casos, a reflexão crítica, tendo como referência as fontes primárias, o depoimento e o documento. Wolfgang Sofsky, em seu excelente livro sobre os campos de concentração A organização do terror 9 ilustra este ponto de vista fazendo preceder cada capítulo do livro de uma longa epígrafe, citando um depoimento de um sobrevivente. Acreditamos que o objetivo da compreensão histórica não é o diletantismo. Nada mais ancorado no presente que o reconhecimento do passado. Também não reduzindo-o somente aos fatos para que prevaleça a dimensão da culpabilidade. Creio que a conservação da memória é, acima de tudo, um dever e o preço que a humanidade deve pagar para garantir a própria sobrevivência.
É um preço pequeno mas só ele poderá conduzir à consciência do que são os regimes criados sob o signo da destruição, do ódio e do poder absoluto.
Não podemos diminuir a responsabilidade do homem: o passado não é neutro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
1.            DRAPKIN, Israel. Nascido em 1906, em Rosário, Argentina, estabeleceu o primeiro Instituto de Criminologia do Chile. Obras principais: Manuel de criminologia (1949) e Imprensa e criminologia (1958).
2.            O termo hebraico "shoa" foi especialmente criado para as circunstâncias da eliminação de judeus durante o domínio do nazismo. Este termo é o preferido pela maioria dos estudiosos ao de "Holocausto" que tem conotação de sacrifício religioso. Porém não se pode prescindir do seu uso por ser mais conhecido e identificar prontamente esse momento da História.
3.            KESTENBERG, Judith et alli, in: BERGMANN, Martins S. e JUCOVY, Milton E. (ed.) Generations of the Holocaust. New York, Columbia University Press, 1982.
4.            ARENDT, Hannah. Nascida em 1906, na Alemanha. Obras principais: Eichman in Jerusalem: a report on the banality of evil (1963); The origins of totalitarism (1951), Men in dark times (1969).
5.            David Cesarani é Diretor do Instituto de História Contemporânea.
6.            LANZMANN, Claude. SHOAH. Vozes e faces do Holocausto. Prefácio de Simone de Beauvoir. Trad. De Maria Lucia Machado. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. Veja-se: DAVIS, Jonathan et alii. "Shoah: a film by Claude Lanzmann" in: The Jewish Quarterly, vol.33, n.º1 (121): 6-16, 1986.
7.            A adaptação do romance foi feita por Steven Zaillian. Em entrevista transmitida pela TVA, dia 17 de maio de 1999, Steven Spielberg denomina seu filme de "docudrama" e conta que as locações da filmagem, que durou 72 dias, foram realizadas nos lugares em que ocorreram os fatos. Veja-se, para outros aspectos: LEHRER, Natasha. "Between obsession and amnesia", in: The Jewish Quarterly, vol.41 n.º3 (155): 26-28, autumn 1994.
8.            O roteiro foi escrito por Vicenzo Cerami e Roberto Benigni.
9.    SOFSKY, Wolfgang. L' organisation de la terreur. Paris, Calmann-Lévy, 1993.

Família Normal?

Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto de Direito de Família – IBDFAM
www.maraiberenice.com
Será que hoje em dia alguém consegue dizer o que é uma família normal? Depois que a Constituição trouxe o conceito de entidade familiar, reconhecendo não só a família constituída pelo casamento, mas também a união estável e a chamada família monoparental - formada por um dos pais com seus filhos -, não dá mais para falar em família, mas em famílias.
Casamento, sexo e procriação deixaram de ser os elementos identificadores da família. Na união estável não há casamento, mas há família. O exercício da sexualidade não está restrito ao casamento - nem mesmo para as mulheres -, pois caiu o tabu da virgindade. Diante da evolução da engenharia genética e dos modernos métodos de reprodução assistida, é dispensável a prática sexual para qualquer pessoa realizar o sonho de ter um filho.
Assim, onde buscar o conceito de família? Esta preocupação é que ensejou o surgimento do IBDFAM - Instituto Brasileiro do Direito de Família, que há 10 anos vem demonstrando a necessidade de o direito aproximar-se da realidade da vida. Com certeza se está diante um novo momento em que a valorização da dignidade humana impõe a reconstrução de um sistema jurídico muito mais atento aos aspectos pessoais do que a antigas estruturas sociais que buscavam engessar o agir a padrões pré-estabelecidos de comportamento. A lei precisa abandonar o viés punitivo e adquirir feição mais voltada a assegurar o exercício da cidadania preservando o direito à liberdade.
Todas estas mudanças impõem uma nova visão dos vínculos familiares, emprestando mais significado ao comprometimento de seus partícipes do que à forma de constituição, à identidade sexual ou à capacidade procriativa de seus integrantes. O atual conceito de família prioriza o laço de afetividade que une seus membros, o que ensejou também a reformulação do conceito de filiação que se desp rendeu da verdade biológica e passou a valorar muito mais a realidade afetiva.
Apesar da omissão do legislador o Judiciário vem se mostrando sensível a essas mudanças. O compromisso de fazer justiça tem levado a uma percepção mais atenta das relações de família. As uniões de pessoas do mesmo sexo vêm sendo reconhecidas como uniões estáveis. Passou-se a prestigiar a paternidade afetiva como elemento identificador da filiação e a adoção por famílias homoafetivas se multiplicam. 
Frente a esses avanços soa mal ver o preconceito falar mais alto do que o comando constitucional que assegura prioridade absoluta e proteção integral a crianças e adolescentes. O Ministério Público, entidade que tem o dever institucional de zelar por eles, carece de legitimidade para propor demanda com o fim de retirar uma criança de 11 meses de idade da família que foi considerada apta à adoção. Não se encontrando o menor em situação de risco fa lece interesse de agir ao agente ministerial para representá-lo em juízo. Sem trazer provas de que a convivência familiar estava lhe acarretando prejuízo, não serve de fundamento para a busca de tutela jurídica a mera alegação de os adotantes serem um "casal anormal, sem condições morais, sociais e psicológicas para adotar uma criança". A guarda provisória foi deferida após a devida habilitação e sem qualquer subsídio probatório, sem a realização de um estudo social ou avaliação psicológica, o recurso interposto sequer poderia ter sido admitido.
Se família é um vínculo de afeto, se a paternidade se identifica com a posse de estado, encontrando-se há 8 meses o filho no âmbito de sua família, arrancá-lo dos braços de sua mãe, com quem residia desde quando tinha 3 meses, pelo fato de ser ela transexual e colocá-lo em um abrigo, não é só ato de desumanidade. Escancara flagrante discriminação de natureza homofóbica. A Justiça não pode olvidar que seu compromisso maior é fazer cumprir a Constituição que impõe respeito à dignidade da pessoa humana, concede especial proteção à família como base da sociedade e garante a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar.