quinta-feira, 8 de março de 2012

Criança e exclusão social: inocência em perigo ou fim da infância?

Angelo Vargas
Juliana Barros
“Todos os seres animados receberam como primeiro Dom da Natureza o sentido de conservação da vida e do corpo; procuram evitar tudo que lhes pareça nocivo, e ao mesmo tempo, procurar o necessário para defesa de sua vida, como alimento, abrigo e outras coisas do gênero”.
Cícero
Velhas formas poéticas de sabedoria afirmavam que a criança é o pai do homem. Se um homem pode ser comparado a uma árvore, a criança é a semente; faz parte da trajetória humana o crescer, o frutificar e o perecer. Nesse sentido a criança seria a fonte e a garantia da eterna juventude para toda a humanidade. Logo, caberia dar à criança todos os elementos essenciais para garantir nosso próprio futuro e nossa continuidade. A criança é o trigo e o pão essenciais para a criação da sociedade, e para cumprir sua missão é-lhe indispensável um solo fértil e propício ao seu crescimento, ao seu frutificar.
No entanto, não é nada disso que testemunhamos no mundo hodierno. Bastam alguns dados (os números não mentem...) para corroborar o declínio do conceito de infância como estratégia de sobrevivência do próprio homem. De acordo, com o Unicef, durante o tempo que dura uma partida de futebol, 10 indivíduos dentre crianças, adolescentes e jovens com menos de 24 anos, na América Latina e no Caribe, são infectados pelo HIV, centenas morrem de doenças que poderiam ter sido prevenidas e milhões não podem exercer seu direito ao esporte e ao lazer.
Por seu lado, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), demonstra que mais de 211 milhões de crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 14 anos, são obrigadas a trabalhar. Esses números retratam a realidade dos países pobres e os em desenvolvimento, mas não excluem os países ricos.
A realidade da exploração infantil (e, consequentemente, sua exclusão) faz parte da história da humanidade e teve seu ápice na implementação da revolução industrial do século XIX, onde a infância trocou o pesadelo dos campos pelo inferno insalubre das fábricas, situação descrita com arte e piedade por grandes escritores como o inglês Charles Dickens e o francês Victor Hugo. Aparentemente, o século XX resgataria essas “crianças-escravas” e o século XXI lhes daria a liberdade plena. Tal não ocorreu. A globalização liberal em nada contribuiu para modificar tal situação; pelo contrário reafirmou a infância como mão-de-obra e mercadoria entre mercadorias. O mesmo ocorrendo em países com defasagens de desenvolvimento. Para Ignacio Ramonet, diretor geral do Le Monde deplomatique, “sem a participação de crianças no trabalho, ganhando sensivelmente menos que os adultos, muitos países veriam sua competitividade ruir, suas exportações diminuírem e suas receitas e divisas caírem de maneira dramática”. A crueldade do sistema não pouparia ninguém.
No caso do Brasil, trata-se de uma questão social que envolve todo o País e toda a Nação. Segundo a professora Maria Victoria Benevides da USP (Universidade de São Paulo) a questão social insere-se no contexto do empobrecimento da classe trabalhadora com a consolidação e expansão do capitalismo desde o início do século XIX, bem como o quadro da luta e do reconhecimento dos direitos sociais e das políticas públicas correspondentes, além do espaço das organizações e movimentos por cidadania social. “A primeira e incontornável constatação histórica se impõe: até o século XIX os trabalhadores ligados à terra não podiam ser expulsos; tinham, apesar da pobreza, um mínimo de segurança. O capitalismo (“tudo que é sólido desmancha no ar”) destruiu essa proteção social e provocou as hordas de excluídos de toda sorte. Se o “Estado do Bem Estar Social”- graças às lutas dos trabalhadores e aos ideais socialistas – conseguiu uma certa estabilidade social, com o reconhecimento dos direitos econômicos e sociais, o neoliberalismo veio provocar o segundo ato dessa tragédia: agora aqueles excluídos da terra, que conseguiram se afirmar como trabalhadores pela garantia das prestações sociais do Estado, tudo perdem, já não têm propriedade e são despojados dos direitos econômicos e sociais. São os novos proletários do terço final do século XX”.
É possível constatar grande ironia: se a criança é o pai do homem, a sua exclusão é herdada de seus pais. E mais: se  “o trabalho honra, eleva e dignifica o homem”, o desemprego (falta de trabalho) desonra-o, rebaixa-o e degrada-o . Aplicada à criança, a categoria “trabalho” muda seu campo semântico para “escravidão”, “exploração” e outros conceitos que não atendem ao fato da infância ser um período de preparação, envolvendo ócio, lazer, educação e todos os direitos humanos agregados ao pleno exercício de uma humanidade em formação.
Nesse sentido, o “trabalho infantil” (expansão que degrada o universo infantil ao mundo do competitivo do mercado com todas as suas distorções) aponta para um sério problema de exclusão. Quando a criança trabalha, muitas vezes em circunstâncias que comprometem sua saúde e esperança de vida, o quadro remete para uma família que usa os braços dos filhos para sobreviver. A comida, o aluguel e a roupa, entre outros itens, apontam para um nível imediato de sobrevivência em que a educação é luxo e o futuro uma aporia.
Sabe-se que a comprovação do trabalho infantil é difícil. O empregador geralmente não contrata a criança, mas empreita seus pais para realizar uma tarefa, que pode ser uma confecção, montagem de peças ou construção de partes além de corte de cana, colheita de frutas, etc. Obrigados a cumprir quotas de produção, esses pais põem toda a família a trabalhar e, geralmente não é possível a fiscalização. Inegavelmente resta-nos apelar para a cegueira ou para corrupção do olhar: o trabalho infantil é uma realidade inexistente.
No entanto, a Constituição de 1988 determina como a idade mínima 14 anos para admissão ao trabalho. Entre os 12 e 14 anos, as crianças só podem trabalhar como aprendizes. O Governo Brasileiro encaminhou ao Congresso Nacional proposta de emenda constitucional que torna ilegal o trabalho de crianças com menos de 14 anos de idade, mesmo na condição de aprendizes. O estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, adotou alguns dos princípios da Convenção 138 da OIT, que estabelece uma idade mínima para a entrada no mercado de trabalho e determina algumas restrições para o trabalho de crianças com menos de 14 anos. O Brasil consolidou, nos últimos anos, um marco legal para retirar as crianças do trabalho. Trata-se de uma intenção e não de um fato consumado.
O “trabalho infantil” tem seu principal uso e abuso na agricultura, a mesma agricultura que, expulsando as famílias do campo, deserda de qualquer esperança milhões de homens, mulheres e crianças para as periferias convulsionadas das grandes cidades. Como se isso não bastasse, as novas tecnologias preparam uma nova forma de exclusão dentro da exclusão propriamente dita: a exclusão digital.
O acesso à informação é atualmente de abrangente discussão no meio social como um todo, justifica-se tendo em vista a importância deste para uma maior justiça social e um crescimento qualitativo de vida. Porém a prática desta atividade não é exercida democraticamente por parte da comunidade mundial como um todo, em especial o território brasileiro. Uma maior visualização e prática do exercício da cidadania pode ser almejado com a implementação de centros que permitam a prática da tecnologia da informação, possibilitando assim aos setores considerados de baixa renda uma maior circulação de informações nestas comunidades tornando possível a abrangência da consciência como um todo igualitário.
Para Mayara Paz (Portal do Protagonismo Juvenil)   “ a essência teórica, porém se faz presente em detrimento da prática da homogeneidade do ensino que, não estando presente na maioria dos lares brasileiros (o computador só é encontrado em 10,6% dos lares do país) torna-se material de visível escassez nos domicílios de baixa renda, tornando-os mais uma vez distantes do ideário de uma democracia concreta”. Se o analfabetismo (funcional ou total), é um handicap  para milhões de jovens brasileiros, o analfabetismo digital é a sentença final de uma vida condenada a ficar à margem do grande rio do conhecimento.
Não obstante resta ainda a exclusão final. E esta ocorre no grau zero da degradação quando a infância se torna literalmente uma mercadoria, isto é, quando o corpo da infância é degradado nas práticas da sexualidade perversa.
Voltemos aos números. De acordo com pesquisa da ONU (citada por Ramonet), de 1990 a 2000, devido às guerras, mais de um milhão de crianças perderam os pais ou foram separadas de suas famílias; mais de 300 mil foram recrutadas como soldados; mais de 2 milhões foram massacradas em guerras civis; mais de 6 milhões foram feridas, mutiladas, ficando inválidas para o resto da vida; 12 milhões ficaram sem teto; e cerca de 20 milhões foram expulsas de suas casas ... Acrescente-se a esta matemática do horror, mais de 700 mil crianças são anualmente vítimas do tráfico de seres humanos, retidas contra sua vontade, em condições de escravidão, devido, segundo a ONU, à “procura de mão-de-obra barata”- setor que cresce – à demanda de meninas e meninos para o comércio sexual.
Escreve Ramonet: “O destino das meninas é particularmente triste. Passam por todo tipo de discriminação. Dos 100 milhões de crianças não escolarizadas que existem no mundo, por exemplo, 60 milhões são meninas. Por serem do sexo feminino, de 60 a 100 milhões de meninas são vítimas de aborto, de infanticídios, de desnutrição e de maus cuidados. Mais de 90% das empregadas domésticas – atividade mais freqüente entre as crianças que trabalham – são meninas de idade entre 12 e 17 anos. Em algumas regiões da África e da Ásia, o índice de soropositivos ao vírus da AIDS é cinco vezes maior entre as meninas do que entre os meninos”.
No Brasil, os números são tão invisíveis quanto a violência. A face mais cruel dos crimes de exploração e abuso sexual é o silêncio da vítima, da família, do Estado. A universidade tem realizado um grande esforço de investigação, assim como inúmeras organizações governamentais. Por seu lado, a imprensa tem feito seu papel, mas uma análise crítica do noticiário mostra que a semântica (alguns jornalistas, por exemplo, ainda classificam incesto como “estupro”, evitando a complexidade do primeiro, etc.) ainda é usada nos jornais como forma sofisticada de silêncio.
Um esforço louvável aparece na pesquisa O Grito dos Inocentes, realizada pela ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e pelo Instituto Ayrton Senna, com apoio do Unicef, da Fundación Arcor e do Instituto WCF-Brasil. A pesquisa analisou a produção dos 48 maiores jornais do País na cobertura do delito sexual contra a criança e o adolescente. Foram avaliados 3.717 textos publicados no ano 2000 e no primeiro semestre de 2001. De acordo com Rubens Amador, editor executivo da ANDI, o estudo “mostra que a imprensa cobre com maior qualidade o crime sexual do que as outras formas de violência contra o universo infanto-juvenil. São ganhos, sem dúvida. Mas o fato é que a exploração sexual infantil e a pedofilia seguem carecendo de uma cobertura ainda mais abrangente e investigativa.
Bibliografia
Amador, Rubens. (2002). O grito dos Inocentes. In: Jornal Correio Braziliense.
ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância). Disponível em: http://www.andi.org.br .
Benevides, Maria Victoria. A Questão Social. Disponível em: http://www.hottopos.com/vdletras/vitoria.htm .
Demo, Pedro. (1998). Charme da exclusão social: Polêmicas do nosso tempo. Campinas: Editora Autores Associados.
Marcílio, Maria Luíza. (1998). A história social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec.
Paz, Mayara. Exclusão Digital. Portal do Protagonismo Juvenil. Disponível em: http://www.cdi.org.br .
Peralva, Angelina. (2000). Violência e democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra.
Postman, Neil. (1999). O Desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia.
Ramonet, Ignacio. (2002). Exploração Infantil. In: Le Monde Diplomatique. Edição brasileira, julho, ano 3, n°. 30.
Rosa, Maria da Glória de. (1974). A história da educação através dos textos. São Paulo: Cultrix.
Unicef. Disponível em: http://www.unicef.org .

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