quinta-feira, 8 de março de 2012

Holocausto: 50 anos depois.

Jorge Josef
Um Congresso de Vitimologia é, sem dúvida, o fórum apropriado para a realização de um painel sobre o Holocausto pois esta ciência interdisciplinar, representada pela Sociedade Internacional de Vitimologia, credenciada como órgão consultivo das Nações Unidas, tem suas raízes na reação aos crimes perpetrados pelo nazismo.
O primeiro encontro dessa importantíssima visão para o drama humano realizou-se em Israel sob a inspiração de seu idealizador, o Dr. Israel Drapkin 1. Mas já em 1947 Mendelsohn pronuncia sua famosa conferência em Bucarest: "Um horizonte novo na ciência biopsicosocial: a vitimologia". Nasce uma ciência a partir do sofrimento de um povo e que se expressa pela generosidade em relação a todos os perseguidos e discriminados. A necessidade e urgência desta abordagem pode ser medida pelo rápido sucesso que alcançou no mundo todo.
No Sétimo Simpósio Internacional de Vitimologia, realizado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991, presidido pela Dra. Ester Kosovski, tivemos a oportunidade, como Relator da mesa sobre Holocausto, de apresentar uma moção, posteriormente aprovada pela Diretoria, nestes termos (após a exposição de motivos):
"Recomendamos seja pacífica e permanente a realização de uma mesa sobre o Holocausto em todos os Congressos da Sociedade Mundial de Vitimologia".
Os motivos que inspiraram esta recomendação continuam vivos em 1999. A luta contra o ressurgimento do nazismo sob as mais diversas formas requer uma vigilância permanente. Cada encontro é também uma oportunidade para aprofundar a reflexão sobre esse momento da História humana – o SHOA 2 – tão intrigante e ainda muito pouco compreendido dada a enormidade dos crimes, apesar dos esforços de pesquisadores do mundo inteiro.
Cátedras sobre o Holocausto foram criadas em diversas Universidades, além de Institutos e Centros de Pesquisa, teses são elaboradas sob os mais diversos aspectos do conhecimento humano em todas as línguas ocidentais. Recentemente, o cineastra Steven Spielberg criou uma Fundação dedicada a preservar a memória do Holocausto através de entrevistas filmadas com sobreviventes de campos de concentração: a "Survivor of the Shoah Visual History Foundation". Com sede em Los Angeles, conta com representantes em várias partes do mundo. Spielberg define-a como "empório multimídia para fins educativos e jornalísticos".
Psiquiatras e psicanalistas têm-se dedicado a observar não apenas sobreviventes como descendentes de 2ª e 3ª geração sobre quem verificaram sérios reflexos, inclusive suicídios como resultado de distúrbios. Isto é parte de um movimento mundial de repúdio à violência. As pesquisas dos psicanalistas como Judith Kestenberg, Martin S. Bergman, Milton Jucovy sobre filhos de sobreviventes demonstram a profundidade do sofrimento e os reflexos no tempo, sob as mais diversas formas, das agressões sofridas. Também o envolvimento dos filhos com o passado dos pais sobreviventes ou desaparecidos nos campos de extermínio é estudado por Maria Bergman e Marion Oliner 3.
Sei que, quando se fala de Holocausto, surgem inúmeras perguntas. Não há respostas para todas, mas duas questões são constantes e proponho-me para, juntos, buscarmos alguma compreensão para com elas.
A primeira é: "Por que o Holocausto?" Se há tantos dramas humanos, antes e depois, como recentemente na Iugoslávia, agora dividida ou mesmo no Vietnã?
Gostaria de dizer que sinto meus argumentos frágeis diante dos grandes dramas. Mas vivi pessoalmente o Holocausto e acho que todos aqueles que presenciaram as violências citadas ou outras têm a mesma obrigação de denunciar e protestar até o dia em que esses protestos sejam mais fortes que a própria violência. Nossa atitude não é excludente, mas de solidariedade com todas as vítimas tanto que podemos afirmar que o movimento dos sobreviventes em defesa dos direitos humanos, em todas as suas formas, é um dos seus aspectos mais positivos.
A Segunda razão dos estudos sobre o Holocausto é a sua especificidade, o seu aspecto único no infelizmente longo histórico da violência humana, sua singularidade cuja compreensão até hoje nos desafia.
Todo evento é único, mas cada um existe em um contexto histórico. A questão é em que contexto vamos tentar entender o extermínio dos judeus.
O escritor Alvin Rosenfeld define: "Não há metáforas sobre Auschwitz, bem como Auschwitz não é metáfora para nada. Por que? Porque o fogo era fogo, as chamas eram chamas, as cinzas eram cinzas, a fumaça era fumaça. Só podia ser o que era: a morte de judeus". Estamos vendo atualmente que, apesar de o significado de Auschwitz como símbolo do Holocausto haver crescido a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os termos têm sido usados na mídia para condenar todas as atrocidades prejudicando a informação sobre um evento único e a capacidade humana para um genocídio sistemático e continuado com um fim consciente de extermínio.
As primeiras gerações de scholars que investigaram o Holocausto fizeram-no à luz da longa tradição européia de anti-semitismo. Hannah Arendt 4 isolou o anti-semitismo como uma das primeiras influências da política moderna. Não há dúvida sobre o significado central do Holocausto para o mundo moderno. David Cesarini 5 tem, com certeza, razão de chamar a atenção dos educadores britânicos para reconhecer esta importância. Uma análise realizada na Suécia assinala que um terço dos adolescentes do país não estavam seguros de que o Holocausto aconteceu na realidade. O fato perturbou profundamente o Primeiro Ministro que lançou imediatamente um projeto com o objetivo de informar a história do Holocausto aos cidadãos do país. O projeto já resultou em uma conferência, programas de capacitação para professores, criação de um centro de investigação universitária, exposições em museus, etc. Porém a mais efetiva foi a compilação e distribuição grátis de um folheto de 100 páginas "Conte a seus filhos", uma descrição gráfica do Holocausto. O folheto foi traduzido ao inglês com ampla distribuição nos colégios de língua inglesa. A questão é como lecionar esta matéria.
A grande preocupação dos memorialistas do Holocausto não é com os historiadores que negam completamente o extermínio ou como o alemão Ernst Molte que, sem o negar, massifica-o comparando a qualquer outra matança. A preocupação é que, a pesar do imenso arquivo de depoimentos e de filmes, quando se esgota o eu vi e começa o eu ouvi e a interpretação filosófica passa a chamar-se de política e os diversos eu entendi.
Como falar a respeito, como explicar, como apresentar o acontecido?
Uma das respostas nos é dada pelo cinema. Arte representativa deste século, une os recursos de todas as outras, sendo, também, a mais popular e a mais difundida. Naturalmente o Holocausto teve enorme filmografia. Mas para exemplificar os três aspectos do que chamamos eu vi- eu ouvi- eu entendi, selecionamos três filmes bastante conhecidos. Trata-se de SHOA, de Claude Lanzman (França, 1985), A lista de Schidler, de Steven Spielberg (EUA, 1993) e A vida é bela de Robert Benigni (Itália, 1999).
Durante dez anos, o jornalista francês Claude Lanzman 6, dedicou-se a uma obsessão. Filmar a morte nos campos de extermínio onde seis milhões de judeus morreram durante a Segunda Guerra Mundial. Recusou as fotos de arquivo e fez um filme de 9 horas: quatro de depoimentos e cinco de silêncio, de imagens de cinema. Apresentou o "Shoa" (que em hebraico quer dizer catástrofe e também aniquilamento). Sem mostrar um cadáver sequer, a morte está presente na palavra, no presente de quem viveu, de quem viu. Afirma Lanzman: "É difícil falar do filme a quem não o viu porque foi construído a partir da impossibilidade de representar a morte".
A lista de Schindler, de Steven Spielberg 7, tem atores: Ben Kingsley, Liam Neeson, Ralph Fiennes, tem a duração média dos longa-metragens (185m). Baseia-se num romance de Thomas Keneally de 1982, que, por sua vez, se baseia numa história verídica, a história de Oscar Schindler. Empresário católico, membro do partido nazista, que explorava mais de mil judeus em suas empresas, num trabalho escravo, torna-se protetor deles e salva suas vidas, numa árdua tarefa de manipulação e confronto com os oficiais nazistas encarregados de sua destruição. No papel principal, Liam Neeson contorna situações perigosíssimas. Usa charme, mentiras e contemporizações para conseguir seu objetivo e salva centenas de homens, mulheres e crianças. Você nunca tem certeza do que Oscar Schundler pensa e tem como objetivo mas vê que é possível salvar, não somente matar. Este filme de 1993 não apresenta mais testemunhos visuais, são atores. Teve grande sucesso de bilheteria e até o presidente Clinton recomendou que fosse visto. Trata-se de filme da Segunda geração pos-Holocausto, enquadrado no conceito do eu ouvi. Podemos acrescentar que a decisão de Spielberg de filmar grande parte em preto e branco ressalta alguns aspectos da filmagem, já que não se trata de documentário. Cria, com este recurso, o distanciamento temporal necessário em obra de ficção baseada em fatos reais.
A vida é bela, de Roberto Benigni 8 trata do fascismo e do drama do nazismo na Itália como metáfora. Gerou controvérsias desde sua apresentação em Cannes onde recebeu o Grande Prêmio do Juri até o Oscar da Academia de Arte e Ciência dos Estados Unidos, onde teve 7 indicações, inclusive três para Benigni. O filme pode ser dividido em dois atos distintos. No primeiro, vemos o excelente protagonista (Benigni), algo clownesco, de fala acelerada, ridicularizando de todos os modos o oficial fascista, seu rival junto à bela Dora (Nicoletta Braschi). A vitória do frágil apaixonado sobre o imponente e poderoso representante do Estado ditatorial é uma delícia.
Os recursos cênicos vão desde a mímica à ironia. Os gags remetem ao cinema mudo e o triunfo do amor sobre tudo e todos e a justa conseqüência e ilusória felicidade introduzem-nos ao segundo ato como um suspense. Antes disso e somente após 20 minutos de filme ficamos sabendo que Guido (Benigni) é judeu. Esse "tempo" diz-nos claramente que, para o primeiro ato isso não tinha importância, era irrelevante, mas terá para o segundo.
A segunda parte mostra-nos um Guido casado e feliz com a linda esposa e um filho, em sua vida cotidiana, bruscamente interrompida pela invasão de sua casa por uma tropa nazista que quebra tudo e prende pai e filho. Ambos são levados num vagão de transporte de animais para os campos da morte.
O que virá depois é de comover qualquer ser humano. O filme não é sobre os horrores dos campos de concentração, não é sobre crueldade e sofrimento. É sobre o amor – amor de um casal jovem separado sem motivos, injustamente. Dora segue Guido no trem da morte por necessidade de amor. Guido busca comunicar-se com sua mulher por amor. O pai protege seu filho com imenso amor introduzindo-o num "faz-de-conta" com jogos e simulações para diminuir o sofrimento da realidade vivida. A parceria do pai com o filho nesse jogo fantástico é a forma que o autor e diretor encontram para dizer o indizível. Não é um conto de fadas, não tem final feliz.
Como Charlie Chaplin nos induz a muito mais do que a primeira leitura mas também como Dom Quixote ensina sobre o humanismo e a generosidade pela farsa. Guido e Dora com o menino Joshua propõem-nos o que pode ser alcançado quando se trata de eu entendi. E nós também entendemos.
Na atualidade, temos, cada vez mais, obras de ficção sobre o shoá, criados a partir do eu entendi. Naturalmente, são reflexões e, como tais, necessitam da participação ativa do leitor – espectador. É indispensável, nestes casos, a reflexão crítica, tendo como referência as fontes primárias, o depoimento e o documento. Wolfgang Sofsky, em seu excelente livro sobre os campos de concentração A organização do terror 9 ilustra este ponto de vista fazendo preceder cada capítulo do livro de uma longa epígrafe, citando um depoimento de um sobrevivente. Acreditamos que o objetivo da compreensão histórica não é o diletantismo. Nada mais ancorado no presente que o reconhecimento do passado. Também não reduzindo-o somente aos fatos para que prevaleça a dimensão da culpabilidade. Creio que a conservação da memória é, acima de tudo, um dever e o preço que a humanidade deve pagar para garantir a própria sobrevivência.
É um preço pequeno mas só ele poderá conduzir à consciência do que são os regimes criados sob o signo da destruição, do ódio e do poder absoluto.
Não podemos diminuir a responsabilidade do homem: o passado não é neutro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
1.            DRAPKIN, Israel. Nascido em 1906, em Rosário, Argentina, estabeleceu o primeiro Instituto de Criminologia do Chile. Obras principais: Manuel de criminologia (1949) e Imprensa e criminologia (1958).
2.            O termo hebraico "shoa" foi especialmente criado para as circunstâncias da eliminação de judeus durante o domínio do nazismo. Este termo é o preferido pela maioria dos estudiosos ao de "Holocausto" que tem conotação de sacrifício religioso. Porém não se pode prescindir do seu uso por ser mais conhecido e identificar prontamente esse momento da História.
3.            KESTENBERG, Judith et alli, in: BERGMANN, Martins S. e JUCOVY, Milton E. (ed.) Generations of the Holocaust. New York, Columbia University Press, 1982.
4.            ARENDT, Hannah. Nascida em 1906, na Alemanha. Obras principais: Eichman in Jerusalem: a report on the banality of evil (1963); The origins of totalitarism (1951), Men in dark times (1969).
5.            David Cesarani é Diretor do Instituto de História Contemporânea.
6.            LANZMANN, Claude. SHOAH. Vozes e faces do Holocausto. Prefácio de Simone de Beauvoir. Trad. De Maria Lucia Machado. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. Veja-se: DAVIS, Jonathan et alii. "Shoah: a film by Claude Lanzmann" in: The Jewish Quarterly, vol.33, n.º1 (121): 6-16, 1986.
7.            A adaptação do romance foi feita por Steven Zaillian. Em entrevista transmitida pela TVA, dia 17 de maio de 1999, Steven Spielberg denomina seu filme de "docudrama" e conta que as locações da filmagem, que durou 72 dias, foram realizadas nos lugares em que ocorreram os fatos. Veja-se, para outros aspectos: LEHRER, Natasha. "Between obsession and amnesia", in: The Jewish Quarterly, vol.41 n.º3 (155): 26-28, autumn 1994.
8.            O roteiro foi escrito por Vicenzo Cerami e Roberto Benigni.
9.    SOFSKY, Wolfgang. L' organisation de la terreur. Paris, Calmann-Lévy, 1993.

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