quinta-feira, 8 de março de 2012

Pipas em Céu Noturno: o hábito de soltar pipas durante a noite na Barra da Tijuca - uma análise do fenômeno.

Angelo Vargas
Leonardo Allevato
Ana Lilia Ollé Galvão
Flávia Fontoura
Universidade Estácio de Sá (UNESA)
Resumo
O hábito de “soltar pipas” ou “empinar papagaio” faz parte do repertorio lúdico da cultura brasileira. No que respeita aos grandes centros urbanos das metrópoles, a prática encontra maior aderência nos subúrbios ou nas periferias. Entretanto, esta espécie de jogo, tem sua origem multimilenar na China e assumiu formas difusas como lazer, celebrações religiosas, pratica utilitária e estratégia bélica. Este estudo investigou a pratica de “soltar pipas” durante a noite na cidade do Rio de Janeiro na Barra da Tijuca. A identificação do fenômeno possibilitou traçar estratégias metodológicas para abordagem dos sujeitos, assim como algumas de suas características e interesses pessoais. A pesquisa assumiu substancial importância, já que o fenômeno é considerado como comportamento atípico para o lugar, sobretudo no que concerne ao local da pratica (orla marítima), e os horários (noite e madrugada), e os “modus vivendi” e “operandi” dos moradores do bairro.

O hábito de “empinar papagaios ou soltar pipas” tem sua origem na China em períodos remotos da história. É possível inferir que tal prática observou três sentidos no contexto social da cultura chinesa: o sentido bélico, o sentido do lazer-lúdico e o sentido sagrado. Se em tempos de perigo de invasões territoriais por tribos nômades, as pipas serviram como sinais de alerta para a direção dos ventos e para a situação tática do inimigo; em tempos de paz, fez parte do repertório lúdico como lazer ou passatempo na cultura oriental. Entretanto, é imperativo destacar o sentido religioso tendo por finalidade, “espantar maus olhados”, quando as pipas subiam aos céus durante a noite iluminadas por lamparinas. Para as sociedades ocidentais, tem, ao longo dos tempos, constituído uma forma de lazer como passa-tempo, prática esportiva (competitiva – artística) e jogo lúdico.
No Brasil, é possível observar esta prática em quase todas as regiões do país, sobretudo nas periferias ou subúrbios das grandes metrópoles. Todavia, importa referir, que o hábito de soltar pipas não se restringe à “territórios tribais” das periferias metropolitanas. Como exemplo, a prática é intensamente utilizada em espaços elitizados, nas praias, morros e favelas das zona sul e leste, como por exemplo, na cidade do Rio de janeiro. Assim, as pipas e todo o aparato que a contempla (expressões regionais, estereótipos, a rabióla, o cerol e etc.) transcendem os limites “circunscritos” das classes sociais e se inserem como um símbolo da cultura brasileira.
Embora as pipas sejam utilizadas com objetivos difusos (inclusive como linguagem simbólica para o tráfico de drogas), é como lazer (acessível às classes de menor poder de aquisição pelo seu baixo custo) que o fenômeno atinge maior significação. Não resta dúvidas que embora o lazer seja contemplado na Constituição da Republica Federativa do Brasil como um direito social do cidadão, seu acesso é estratificado conforme o poder de aquisição e consumo dos grupos sociais. Na lição de Melo e Alves Junior (2003), as formas de diversão ou práticas de lazer resguardam diferenças axiológicas conforme as épocas não só no que tange a sua morfologia como também no que concerne aos objetivos: “Contudo, observamos que a contínua busca de formas de diversão não significa ter sempre existido o que hoje chamamos por lazer, na medida em que tais formas de diversão guardam especificidades condizentes com cada época, que devem ser analisadas com cuidado. Por certo existem similaridades com o que foi vivido em momentos anteriores – e mesmo por isso devemos conhecê-los, mas o que hoje entendemos como lazer guarda peculiaridades que somente podem ser compreendidas em sua existência concreta atual. O fato de haver equivalências não significa que os fenômenos sejam os mesmos. Podemos observar as diferenças até mesmo nas formas de denominação. É somente a partir de determinado momento da história que se começa a utilizar a palavra lazer para definir um fenômeno social...” (Melo e Alves Junior, 2003.p.2).
O fato da prática das pipas transcender as fronteiras dos subúrbios e periferias e inserir-se nas alternativas de diversão ou lazer dos bairros “nobres” ou “emergentes”, como no caso da cidade do Rio de Janeiro, sugere uma socialização do ócio e dos tempos livres que por sua vez desconhece as barreiras econômicas e se unificam nas possibilidades lúdicas. A prática das pipas (com cerol e todo o repertório de linguagem e estereótipos a ela afeitos), na Barra da Tijuca no período noturno, causou em um primeiro momento, perplexidade e estranheza tendo em vista não fazer parte do “modus operandi” da população. Contudo, a magnitude dos eventos (como a participação simultânea de mais de duas centenas de sujeitos) constitui um fenômeno a ser investigado diante da intrigante trama que envolve o “jogo de cortes” ou a “tosa” e seus participantes (jogadores).
Em Deporte e Ócio en el proceso de la civilización, Elias e Dunning inferem que: “nas sociedades industriais avançadas, as atividades recreativas constituem um reduto em que a inserção social pode expressar-se de forma moderada no que diz respeito aos níveis de emoção. Não poderemos entender o caráter específico e as funções concretas do ócio nas sociedades, se não nos damos conta de que em geral, o nível de controle das emoções tanto na vida pública como na vida privada, se eleva nas sociedades menos diferenciadas (Elias e Dunning, 1986.p.85)
O presente estudo objetivou identificar os sujeitos no que respeita a faixa etária e a área da cidade em que residem e investigar ,sobretudo, as razões que os levaram a prática das atividades no local específico (no posto 8) durante a noite.
Como procedimento metodológico foi utilizado a observação “in loco”, que possibilitou a análise do repertório de comportamento dos sujeitos no que concerne às relações interpessoais e em “situações de jogo”. Numa segunda etapa do estudo, após utilização de estratégias de aproximação, foi aplicada uma entrevista semi-estruturada que possibilitou o levantamento das características dos sujeitos.
Os resultados permitiram observar que os eventos ocorrem entre os dias de sexta-feira e domingos no horário entre 18:30 e 3:00h na Avenida Sernambetiba no posto 8. No que diz respeito às características dos sujeitos, (68 indivíduos) as faixas etárias variaram entre 11 e 60 anos de idade e prevaleceram com 99,8% o sexo masculino. Em sua maioria (83%) são jovens entre 11 e 30 anos de idade. No que tange as culturas juvenis, Machado Pais (1993), assevera que “todo significado cultural é criado com o uso de símbolos. As palavras que um jovem ...dirige numa entrevista são símbolos. A forma como esse jovem veste também se reveste de um significado simbólico. O mesmo se pode dizer da sua expressão corporal..., todo símbolo é qualquer objeto ou evento que se refere a alguma coisa ou, melhor ainda, todo o símbolo envolve três elementos: símbolo em si mesmo, um ou mais referentes e a relação entre símbolo e referente. Esta tríade é a base de qualquer significado simbólico. A descoberta dos significados dos símbolos passa pela compreensão dos significados que esses símbolos tem para os indivíduos, mas vai mais longe do que isso: passa também pela compreensão do uso que os indivíduos fazem desse símbolo (p.61).
O Discurso dos indivíduos respeitante as razões de suas participações nos eventos permitiu identificar categorias tais como possibilidades de estabelecer relações de amizade, baixo custeio, possibilidades de fazer negócios (auferir renda), recurso terapêutico, falta de alternativas de programa, todavia, a categoria “prazer” foi a que mais emergiu dos discursos sugerindo, destarte, que o envolvimento dos sujeitos ocorre sob a égide do lazer. Não obstante o “jogo de cortes” e o ato de “cortar o inimigo” (interveniente ou par) denota uma espécie de “sensação de poder” simbolizado pela permanência de sua pipa no ar. O local parece ser o “campo de batalha”, e a Barra da Tijuca, constitui o local, (elitizado e sem fios de alta tensão) o “território” ou o “céu” conquistado pelo “invasor”.
No que tange ao local de origem dos sujeitos o estudo possibilitou identificar que os participantes residem em praticamente todos os bairros da região metropolitana com destaque para a Zona Sul (Rocinha) e a Zona Oeste (Jacarepaguá). O resultado aponta para uma socialização do lugar, via de regra, em período noturno freqüentado por moradores do bairro objetivando outras formas de utilização do tempo livre ou lazer como a “corrida na praia”, encontros em bares e restaurantes.
Merece destaque a “noção de risco” para si próprio e para as outras pessoas no discurso dos sujeitos. Foram apontados riscos a si próprios como lesões derivadas das linhas com substância cortante (cerol) até os graves acidentes envolvendo motoristas e motociclistas causados também pelas linhas com “cerol”. Somos levados a concluir que o risco (calculado ou não) faz parte do imaginário lúdico dos sujeitos e as sensações de perigo constituem fatores essenciais às experiências de vertigem.
Ainda na lição de Elias e Dunning verificamos que os riscos possibilitam identificar com mais “claridade” um dos aspectos fundamentais das relações entre as atividades recreativas e não recreativas. Talvez seja possível resumir-se conceitualmente se fizermos referência a uma polaridade específica que recorre a vida inteira na forma flutuante de equilíbrio das tensões entre o controle e a estimulação emocional.
É importante assinalar que as manifestações de equilíbrio de tensões variam conforme as sociedades e os grupos que as compõem (Elias e Dunning, 1986. p.144) O estudo possibilitou inferir que aspectos ligados a violência e a segregação social (simbólicas ou manifestas), podem constituir num fator de relevância para esta “espécie de migração” territorial que por sua vez tem modificado os hábitos e os costumes dos moradores e freqüentadores da Barra da Tijuca. Nas lições de Melo e Alves Junior é possível destacar “que é fato inconteste que o tecido humano se desgastou de forma alarmante nas ultimas décadas, o que é também observável em outras cidades do mundo e do Brasil.... O desordenamento econômico global tem produzido efeitos cada vez mais devastadores. Neste processo de desgaste e desordem, é importante perceber como as cidades estão cada vez mais fragmentadas, cada vez mais rigidamente compartimentadas em blocos e submetidas a administrações que privilegiam os grupos economicamente poderosos “(Melo e Alves Junior, 2003. p.48)
Em ultima analise, o hábito de “soltar pipas” à noite na Barra da Tijuca, retrata mais que uma oportunidade de lazer ou passa-tempo. O fenômeno, passa a constituir formas simultâneas de reinvidicações para a ocupação e socialização do espaço urbano de forma simbólica ou manifesta; uma espécie de ação para a libertação dos oprimidos e o conseqüente apoderamento da cidade.
BIBLIOGRAFIA
ELIAS, N, Dunning, E. Deporte y ócio em el proceso de la civilización. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1986.
 MELO, U. A.; ALVES JUNIOR, E,D. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003.
 PAIS, J, M. Culturas juvenis. Lisboa: Casa da Moeda – Imprensa Nacional, 1993.
 VARGAS, A. As sementes da marginalidade. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001.

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